Certamente o processo de greve deflagrado nas universidades federais há alguns dias se apresenta em um contexto diferente de outros movimentos grevistas na educação superior de anos anteriores. As últimas greves tiveram como marca a desmobilização da comunidade universitária e o pouco diálogo com o conjunto da sociedade, desgastando este legítimo instrumento dos trabalhadores. No entanto, este ano, temos assistido um movimento mais vigoroso, com novos sujeitos políticos em cena e pautas que se articulam para além das entidades tradicionais do movimento social de educação. Esse novo cenário traz um ambiente propício para a discussão do conteúdo deste movimento.
A novidade desta greve parece resultado de uma questão decisiva: De qual universidade e de qual sociedade esta greve está falando? Há de se imaginar que novos elementos na conjuntura vão exigir outras elaborações que irão implicar em novos processos reivindicatórios. Destacam-se dois pontos fundamentais em que se evidenciam mudanças importantes. Primeiro, a ampliação da universidade pública no Brasil e em segundo a diminuição da pobreza com geração de emprego e renda. Assim, o debate se deslocou do âmbito da necessidade de existir ou não universidade pública em uma sociedade em que grande parte da população vivia na condição de miséria para a possibilidade da universidade repensar o seu papel na democratização do país.
Estas novas condições engendram um conjunto de contradições no interior das universidades de tal ordem que a mobilização torna-se uma condição necessária para propostas de mudança se viabilizarem. O REUNI, programa do governo federal responsável pela ampliação da oferta de vagas e pela interiorização da universidade, também tinha por objetivo mudar a estrutura universitária no sentido de democratizá-la. Entretanto, este projeto enfrenta dificuldades para a sua plena implementação, tanto pela limitação orçamentária, quanto pela sua conformação ao caráter autoritário que caracterizou historicamente as instituições de ensino superior no Brasil. Não se imaginava que a universidade mudaria radicalmente apenas com a adesão das IFES a um projeto governamental. Os setores conservadores que se beneficiam de um modelo antidemocrático de universidade construído há mais de 100 anos não seriam derrotados apenas por um processo legal e burocrático.
Por outro lado, o fortalecimento das classes populares resultado do crescimento do trabalho e da renda no Brasil exige pensar um novo papel dos serviços públicos no debate ideológico. Os interesses privados do mercado logo se colocarão como provedores de serviços pagos de baixa qualidade, como educação e saúde, para atender esse novo mercado. A ascensão social vinculada apenas ao aumento do consumo não cria mecanismos de mudanças, ao contrário, conforma as possibilidades abertas com o crescimento econômico. Torna-se fundamental o Estado ofertar serviços públicos de qualidade e universais, com o objetivo de fortalecer a cidadania para além do consumo. Portanto, a ampliação do ensino superior deve ser uma questão prioritária nos debates da greve, já que o crescimento das universidades federais está aquém das exigências impostas pelas transformações presentes na sociedade brasileira.
As contradições e as possibilidades presentes nesses processos de mudanças permite a construção de agendas de transformação com mais vigor pelo movimento grevista. Enquanto no passado as IFES estavam sendo sucateadas pelo desmonte operado pelo neoliberalismo brasileiro, este ano a mobilização se insere em uma conjuntura de retomada dos investimentos na universidade pública e de centralidade do ensino superior na discussão de um projeto de sociedade. Assim, passamos de um movimento de resistência ao modelo vigente a um processo de disputa de projetos, onde a universidade pública não está em questão, mas sim o que queremos dela.
Soma-se a isso entrada de um novo público na universidade, resultado do REUNI, tanto de docentes como de estudantes. Esses novos sujeitos, evidentemente, pressionam para que a universidade atenda suas demandas e interesses que na maioria das vezes não são nem escutadas. A impressão que passa é que a universidade mantém uma relação de estranhamento com estes sujeitos, mas agora eles estão dentro dela e exigem participar de sua dinâmica. A reivindicação destes setores vai desde a infraestrutura necessária até uma nova concepção de construção do saber, mais democrática e com relevância social. Isso pode ser percebido em algumas agendas que sustentam esta greve, onde estudantes se mobilizam por condições adequadas de estudo e trabalhadores se colocam contra propostas que aprofundam a divisão do saber entre os que produzem pesquisa e os que se dedicam a docência.
Assistimos, neste sentido, o surgimento de um novo tipo de protagonismo no interior das universidades, onde os sujeitos se organizam e estabelecem redes para além das entidades tradicionais dos trabalhadores e do movimento estudantil. Estes novos atores políticos elaboram suas pautas a partir do vivido no cotidiano e não através de modelos pré-estabelecidos ditados pelas estruturas das entidades tradicionais. Os sindicatos de trabalhadores das universidades e o movimento estudantil tem uma grande oportunidade, nesta greve, de se reinventarem e se colocarem a altura das questões de seu tempo.
Portanto, esta greve tem revelado movimentos interessantes para além do que podemos enxergar a primeira vista. Estes movimentos contestatórios, elaborados a partir do cotidiano das instituições por novos atores políticos, é onde se encontra a possibilidade desta greve conseguir superar uma concepção apenas corporativa, evidenciada em greves anteriores, e construir processos com a potência necessária para produzir mudanças radicais na estrutura das universidades brasileiras, caminhando para superar definitivamente a crise de legitimidade em que se encontra a universidade em relação ao conjunto da sociedade.
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Rafael Chagas é diretor da Associação de pós-graduandos da UFF e mestrando em saúde coletiva da mesma universidade.